Mudamos, é assim, muda tudo, mudamos nós também. E, no entanto, algumas coisas ficam sempre, os pés descalços sobre o soalho nas noites de verão, as calças de linho atadas na cintura, as mesmas, agora macias de uso e lavagens, as cigarras imaginárias lá fora, as traças esmagadas contra as paredes. Mas mudamos, é inevitável. Lembro-me - agora tão vagamente, quase me parecem memórias emprestadas - do imenso medo de atirar os sapatos pela janela fora. O pavor de poder ter que pisar, ao mesmo tempo, cascas de ovos e pedaços de espelhos partidos. Em bicos dos pés, bailarina atabalhoada em pontas, na pirueta a queda certa, os cacos espetados pelo corpo (sem rasgarem a roupa; como são violentas essas feridas invisíveis). Mas sempre insistindo e não se pode dizer - dizemos mas é tão mentira - que se crie calo, que doa menos nas próximas vezes, se alguma coisa, dói mais porque já sabemos e a antecipação da dor não a atenua, antes a aumenta. Desistimos, é certo, em certas alturas mas depois, não, não é coragem - dizemos que sim mas é tão mentira - é só atracção do abismo, vertigem (do degrau mais alto), que nos faz
atirar de novo os sapatos pela janela, desatar uma vez mais os atilhos e pisar - eventualmente, inevitavelmente - dizemos depois - mais cacos, mais vidros, mais cascas de ovos. Sem as quebrar, sem quebrar tudo à nossa volta a começar nas pontas dos dedos e a teminar nas raízes dos cabelos.
Mudamos. Passamos a bailarinas permanentes, sempre em pontas, o contacto com o chão já desligado. Desligadas, etéreas, eternas na vontade de nos descalçarmos e atirar os sapatos - e a precaução - pela janela fora.
Só muda o desaparecimento do medo. O resto é - apenas e só, lamento dizê-lo, não acreditando eu no destino - uma questão de sorte.
O canto das cigarras-tritão
2.7.09
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Comments
2 Responses to “O canto das cigarras-tritão”
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E não é aborrecidinho (assim só um bocadinho) quando até temos sorte? Quando de repente aquilo deixou de ser sapatilhas de pontas e passou a pantufas, giras ok, mas pantufas na mesma? [eu sou tão eternamente insatisfeita com o meu calçado].
2 de julho de 2009 às 09:53Essa é a parte espantosa. Não, não é aborrecido. É que assim podemos estar sempre descalças.
2 de julho de 2009 às 20:31Enviar um comentário