O alcance dos gritos

30.7.09

Diogo parou para tentar rebobinar a sequência de eventos que o tinham levado até aquele momento. Tinha acordado com aquela leve sensação de angústia, semelhante a quando constatava que só lhe restava uma cápsula de Nespresso na prateleira da cozinha. Com o passar do tempo a angústia tinha-se espalhado até se parecer mais com o que sentia quando sabia que ia falhar um prazo de entrega importante.

A sua vida tinha sido um mar de calmaria desde que se lembrava, até ter conhecido Luísa. Por ela tinha-se apaixonado perdidamente, nada a ver com tudo o que tinha experimentado até aí com as outras mulheres que se tinham cruzado no seu caminho. Até então tinha gozado de uma leveza de espírito rara nos homens com quem confraternizava. Andavam sempre todos cheios de problemas... com a mulher, com o carro, com o chefe, com os filhos, com as (ou os) amantes. Ele não, sempre tinha mantido aquela vontade de brindar à vida, sempre vivida de forma intensa e fluida.

Ao início tinha sido tudo tão bom, eram totalmente compatíveis, achava que tinha encontrado a sua alma gémea. Viajaram imenso, fizeram amor em todos os cantos de todos os quartos de hotel por onde passaram. Diogo divertiu-me como nunca, achava que tinha finalmente atingido aquele patamar porque todos os homens e mulheres anseiam, de paz, de segurança, de conforto, de felicidade!

Mas depois um dia os gritos de prazer dela tinham sido substituídos por ordens! Ela queria ter um filho dele, queria um miúdo que herdasse aqueles seus olhões azuis de morrer dentro deles e gemer por mais. E ligava-lhe a toda a hora, queria-o ali a tentar impregná-la, tratando-o como mero contentor dos genes dos futuros filhos dela! Tinha arrastado Diogo de médico em médico, tentando de tudo, obcecada com aquela vontade férrea de parir!

Ontem tinha sabido, ela tinha-lhe dito, assim como se o informasse que tinha ganho o euromilhões. Estava grávida dele, não de um, mas de dois, dois filhos dele, dois rapazes, dois fiéis depositários dos seus genes de ouro! Diogo dirigiu-se para a varanda na vã tentativa de apanhar um pouco de ar fresco, dividido entre a filha da putice da culpa que o assaltava por ter cumprido as ordens de Luísa e a vontade de desaparecer para onde os seus gritos nunca mais o alcançassem.

É, devia ter-se posto a milhas assim que os gritos de "fode-me!" foram substituídos pelos de "faz-me um filho!" Agora estava tramado e bem tramado, num beco sem saída, agarrado, prisioneiro sem apelo nem agravo nem perdão possível, condenado para sempre a tudo aquilo que sempre tinha renegado, escravo dela, deles, e de todas as responsabilidades concebidas artificialmente e in vitro! Puta que a pariu!

Comments

5 Responses to “O alcance dos gritos”
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Minha querida Sibila (bem sei que neste blog ninguém conhece ninguém, mas, lá está, a escrita das pessoas é como é, aposto um jantar no Tejas Verdes, que fica ali na estrada como quem vai para Burgos em como, ao terceiro post, sei quem o escreveu, maneiras que, minha querida Sibila, posso tratá-la por "minha querida Sibila" que não correrei o risco de me esticar no tratamento).

Minha querida Sibila, dizia eu, estivesse você num certo camarote de um determinado estádio de futebol, ontem à noite, e o seu conceito de "sensação de angústia" ganharia uam nova dimensão.

Mas, em verdade lhe digo, não era nada disto que lhe queria dizer, o que, na verdade, gostaria de lhe transmitir é que era esperado que o Diogo acabasse por se entalar, um tipo que faz amor nos cantos dos quartos de hotel não é bom augúrio, não há posição estável que permita uma performance que cumpra os mínimos, um tipo acaba por se enervar e não é bom para ninguém. Pior, toda a gente sabe que os cantos têm um feng-shui aziago, as energias negativas todas concentradas naquela área de canto, é por isso que quem sabe destas coisas acaba por colocar lá uns aquários, tem a dupla vantagem da água em movimento, que afasta os maus espíritos e de impossibilitar tecnicamente a feitura do chamado amor pelos cantos.

Basicamente era isto, para além de a saudar efusivamente, embora com o maior respeito, lá está...

30 de julho de 2009 às 18:16
Sibila disse...

Claro Visconde, todos sabemos que estas histórias acabam sempre mal (ou bem, dependendo do ponto de vista! :))

Realmente a coisa tá um bocado mal engendrada, acho que foi uma tentativa de perceber se eu um dia serviria para escrever trash literature, mas já percebi que não tenho muito jeito para a coisa!

Quanto às angústias do futebol, pois isso confesso-lhe que nem remotamente faço ideia do que sejam, já a angústia da falta das cápsulas da Nespresso sei bem o que é, até porque a única vez que as mandei vir pela net estive não sei quantos dias à espera que o delivery boy atinasse com o sítio da entrega!!

De resto muito lhe agradeço o tempo e a gentileza (quase diria sensibilidade!) que nos dispensa. You are a true gentleman my dear... e todas sabemos o quão raro isso é nessa subespécie que são os seres humanos de sexo masculino!

31 de julho de 2009 às 09:58

Sibila, soubesse o rapaz das entregas do Nespresso quem era a destinatária da encomenda e havia de voar para a entrega, passando à frente de Clientes prioritários.

(de resto, a história está bonita, havia era de substituir o fazer amor pelos cantos por fazer amor numa chaise loungue, desde que não fosse dessas da Moviflor)

(e muito obrigado pelo seu último parágrafo, conseguir derreter este meu coração de aço...)

31 de julho de 2009 às 11:00
Tricia disse...

Não tinha nada ideia que a assanhada do tictac biológico tivesse apontado uma arma ao coitadinho, mas lá está, ele há armas de todo o feitio e em todo o sítio...

1 de agosto de 2009 às 01:19

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