To boldly go where no man has gone before

2.7.09

Passou a mão pelo cabelo e pensou que tinha mesmo que ir apanhar ar. Talvez não tivesse sido grande ideia esta de fazer um cruzeiro em família, não dele claro estas ideias nunca eram dele, limitava-se a comparecer e a pagar a conta no final. Balbuciou uma desculpa e saiu para o convés convencido que o ar fresco da noite o ajudaria a limpar a névoa que se tinha instalado sobre a sua cabeça assim que tinham embarcado. Recordava agora esse momento, ela delirante, as crianças transbordando duma irritante felicidade.

Pensava em conversas que já tinha tido com alguns colegas do trabalho, que era de homem fazer sacrifícios pela família, alguns até passavam a gostar disso, inclusive das romarias aos centros comerciais arrastados pelas mulheres à procura do último disco do Tony Carreira. Era de homem chegar-se à frente e proporcionar esse prazer à mulher, comprando o disco do tal fulaninho com que elas suspiravam à noite quando se viravam de costas alegando dores de costas ou de cabeça ou de qualquer outra parte do corpo em que o pobre do marido se lembrasse de pensar em tocar-lhes.

Era de homem tudo aquilo, a família em primeiro lugar e ele em último. Mas agora nesse momento de solidão, por baixo de um céu pejado de estrelas e envolvido pelo reconfortante silêncio do oceano profundo, nada disso parecia fazer sentido. Toda aquela vida era uma merda, tinha sido desde o dia em que lhe tinha dito o malfadado sim, avançando por um caminho que não escolheria nem de olhos vendados! Seria tarde demais? Ela parecia ser feliz, adorava os pequenos prazeres que o dinheiro dele lhe proporcionava. As crianças iam pelo mesmo caminho, soando-lhe tão a falso aqueles "ohhh siimmm! És o melhor pai do mundo!!" que recebia sempre que lhes comprava as inutilidades caríssimas que lhe pediam. Uma vida inteirinha de sacrifício, porquê, para quê e sobretudo em nome de quem??

Acercou-se do corrimão e olhou lá para baixo, para as ondas de espuma que rodeavam o navio. Se toda a navegação fosse assim, tão suave, sem balanços nem sacudidelas... era o tudo ou nada, sentia-o a quebrar-se dentro de si. A parte anterior, já casca, ficaria ali, vazia, oca, morta... e a nova partiria enfim, atirando-se de cabeça para o desconhecido, preferindo mil vezes isso a ter que as enfrentar novamente, a ela e a essas crianças iguaizinhas à mãe. Lentamente subiu para cima do corrimão, olhou para o céu e para as estrelas, abriu os braços e pela primeira vez em toda a sua vida voou, um voo solitário, mas suave, sem balanços nem sacudidelas nem amarras nem limites!

Comments

4 Responses to “To boldly go where no man has gone before”
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Paula disse...

Cobardote, o tipo, não?
( Texto muito bem escrito)

2 de julho de 2009 às 22:09

Sibila, será dos meus olhos ou nos seus escritos (brilhantes!) o digno representante do género masculino tem sempre um final deveras infeliz?

3 de julho de 2009 às 15:41
Mercedes disse...

Coitadinhos, Visconde. Já fui insultada por (muito) menos.

3 de julho de 2009 às 16:07

Mercedes, não é da natureza dos representantes do género masculino ter finais infelizes.

(insultada?...)

3 de julho de 2009 às 17:19

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