Depois do adeus

8.7.09

"Dá-me um beijo" pediu-lhe em jeito de súplica. "Já não gosto dos teus beijos" respondeu-lhe ela evitando olhar para aqueles olhos de cachorro abandonado.

Ultimamente agoniava-se com o cheiro dele, aquele misto de suor e cerveja com tabaco que se tinha tornado insuportável para o seu sensível olfacto. A náusea superava a pena, e era apenas isso que a tinha mantido ali tantos e tantos anos, ao lado de um homem que não sabia ser humano. Saiu para o quarto, determinada a fazer a mala pela última vez, tentando afastar da ideia as questões que ainda a assolavam... quem iria tomar conta dele? Da sua roupa, da comida, das contas corriqueiras que ela tinha tratado toda a sua vida? Quem iria manter este homem do lado aceitável da barreira social?

Suspirou profundamente e concentrou-se no que tinha para fazer. Sabia que iria encontrá-lo, revê-lo nas esquinas da cidade, deitado nos bancos de jardim, assumindo o rosto de todos os sem-abrigo que se atravessassem no seu caminho. Lia-lhe o destino ainda antes do seu inevitável desenlace. Mas tinham sido muitos anos, demasiados, e sentia-se demasiado fraca para continuar ali. Precisava de encontrar um espaço, em silêncio, um convento seria bom, um sítio onde não precisasse de pensar em nada nem tomar conta de si nem de ninguém. Encomendaria a sua alma a Deus, e a dele também. Se passasse os dias que lhe restavam a rezar seria apenas para que a morte dele fosse breve e sem sofrimento. E já agora que não o deixassem morrer ao relento.

Comments

2 Responses to “Depois do adeus”
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Anónimo disse...

Se o «homem não sabia ser humano» por que é que ela estava ali cheia de pena, rezando a Deus. Temerária ou demasiado humana...?

8 de julho de 2009 às 14:39
Sibila disse...

João, suspeito que seja devido àquela coisa mítica a que chamam de "instinto maternal"…
Beijo, S

8 de julho de 2009 às 15:16

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