Já nem se lembrava bem de como tinha ido ali parar. Sabia que aqueles serviços lhe tinham sido recomendados por uma colega de trabalho, num momento de desespero em que tinha deixado escapar uma lágrima acompanhada dum gemido prolongado, incapaz de esconder a profundidade da depressão em que se afundava. O sítio não era demasiado agradável nem confortável mas também não estava à espera que assim fosse. Depois de aguardar durante longos minutos sentada numa cadeira de plástico indicada por uma assistente prestável, viu a figura emergir duma porta que se abria ao fundo do corredor. A dominadora estava ali, marchando determinada na sua direcção.
Não houve cumprimentos de espécie alguma, não era para isso que ali estavam. A dominadora colocou-lhe uma coleira à volta do pescoço e ordenou-lhe que a seguisse. Percebeu que não estava ali para falar nem ser ouvida quando a dominadora a mandou estar calada e lhe colocou uma mordaça na boca. Puxou-a pela coleira e levou-a até uma grande cruz onde a prendeu pelos pulsos e pelos tornozelos. Como que por milagre a cruz elevou-se um pouco e quando levantou os olhos do chão olhou para ela, a sua dominadora à sua frente de pé, as longas pernas abertas num perfeito ângulo de 60º. Foi isso que mais estranhou, essa aparente perfeição geométrica numa figura que tinha mais de repelente do que de atraente. A dominadora estava totalmente coberta de cabedal preto da cabeça às virilhas, sendo o preto dominante apenas interrompido pela brancura das pernas esculpidas abertas num V invertido com botas pretas de salto altíssimo penduradas nas pontas.
O silêncio foi quebrado pelo som da sua roupa a rasgar-se. A dominadora arrancou-lhe tudo, rosnando, furibunda, sempre que encontrava alguma resistência à penosa tarefa. Ficou assim desnuda, exposta, pendurada numa cruz, com uma mordaça na boca sentindo que talvez aquele fosse o princípio do fim de tanto sofrimento, tanta dor, agora seria só a recta final, o culminar de tantos anos a sofrer sem sentido nem motivo. Lembrou-se do negrume das freiras que a tinham educado em criança, lembrou-se da multitude de vezes que lhe diziam que todos nascemos para sofrer, e que ela iria sofrer até morrer porque tinha nascido do pecado, Pecado esse que se tinha tornado tão gigantesco dentro de si que por vezes quase a sufocava. Regurgitava dor em estado líquido e tomava comprimidos para tentar extinguir o vulcão latente de onde ela vinha, acordando sempre sentindo-se pior do que nunca. Talvez provocando a erupção pudesse aliviá-la, talvez... pelo menos era por isso que tinha tentado este último recurso.
A dominadora acendeu uma vela e baixou a cruz, fazendo que com ficasse deitada na horizontal, directamente abaixo duma luz intensa que lhe feria a vista. Fechou os olhos e manteve-se quieta, na expectativa de encetar a dolorosa via sacra. Sentiu um primeiro pingo, depois mais, até ser quase uma maré de pingos de cera a ferver tocando-lhe na pele fria, abrindo pequenos socalcos, empestando o ar com um cheiro de carne queimada. Ah a dor subia, sentia-a despertar dentro de si, pujante, brilhante, maior do que nunca.
A dominadora abriu-lhe um dos olhos e começou a espetar-lhe pequenas agulhas, primeiro superficialmente, depois enterrando-as até encontrar resistência por parte do osso, gerando uma nova dor, mais fina, que se juntava ao grosso caudal que emanava das inúmeras feridas abertas pela cera ardente. Já não via nada, só um buraco negro entrecortado por pequenos raios de luz penetrante sempre que uma das agulhas se enterrava na sensível retina, cravando-se no nervo óptico, destruindo-lhe irremediavelmente a visão.
Era aquela a última experiência, o supra sumo da dor que alguma vez tinha sentido. Aliás já não era ela, tinha deixado de ser, agora era só dor, horripilante, gritando muda no silêncio forçado pela mordaça que lhe tinha sido colocada. Só nessa altura sentiu pânico, sentiu-o crescer face à dor, tentando devolvê-la à sua condição humana, mas já era tarde demais. Sucumbiu face à dor, deixou-se levar por ela, atingiu um patamar nunca antes alcançado mas o seu coração não aguentou. Quando os paramédicos chegaram para a levar já estava morta sem qualquer hipótese de reanimação. Tinha provado a si mesma que só a dor é real, tudo o resto é pura ilusão.
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2 Responses to “O alcance do masoquismo”
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Eu sempre imaginei que o prazer que os masoquistas sentem provém não do castigo mas do alívio quando o castigo cessa [que aliás desde bebés sentimos todo o prazer através do alívio, como os animais].
28 de agosto de 2009 às 16:09Pode ser Mercedes, mas neste caso a minha gaja, digo protagonista desta execrável historieta, não estava explicitamente à procura do prazer... apenas queria chegar ao fim da dor que sentia, ou julgava que sentia. :)
28 de agosto de 2009 às 17:44Enviar um comentário