O alcance da injustiça

3.9.09

Fechou os olhos a custo, sentindo as pálpebras a arder enquanto a cabeça latejava, previsivelmente assinalando o início de mais uma enxaqueca. Hoje tinha-lhe dado um ultimato, mais um, mas que tinha decidido ser mesmo o último. Não podia continuar assim, estava em processo de auto-destruição acelerado e se não terminasse rapidamente aquela história não sairia viva da experiência que tinha encetado há dois anos atrás. Na altura achou que devia viver o momento porque aquele homem lhe interessava mais do que todos os outros e não queria nem saber que ele tinha mulher e filhos. E na verdade tiveram momentos muito bons, de entrega total, duma cumplicidade difícil de igualar em qualquer tipo de relação.

Mas houve um dia em que se fartou de esperar. Ele não lhe atendia o telemóvel, e não lhe respondia às inúmeras mensagens que fora deixando ao longo do dia. Começou a ficar preocupada, ele nunca tinha deixado de lhe ligar de volta, talvez não no momento mas acabava sempre por ligar. E depois quando se encontravam os seus expressivos olhos negros davam-lhe sempre a volta ao coração fazendo-lhe lembrar a letra duma velha canção de Francisco José, "olhos negros são queixume de uma tristeza sem fim". E ela queria muito mudar a tristeza que sentia nele, queria tanto conseguir curar essa tristeza que transparecia nos olhos desse homem que amava.

Mas nesse dia, em que esperou mais do que sentiu ser a sua conta, decidiu que não tinha vida para aquilo, para ele. Não podia estar sempre à espera, que lhe desse jeito a ele, à sua mulher, aos seus filhos e ao resto de toda a sua família. Porque nesse dia tinha ficado à espera dele sem saber que a sogra lhe tinha pedido para ir com ela ao IKEA porque precisava dum homem para lhe carregar e montar os móveis que tinha escolhido para remodelar o quarto da filha, mulher daquele homem de olhos negros que não sabia dizer que não a mulher nenhuma.

Considerou muitas vezes se podia viver aquela meia vida com alguém que só lhe podia dedicar um décimo da sua, talvez nem tanto. Mas também a ela custava dizer-lhe que não, os seus olhos negros tinham o condão de a deixarem à beira do desespero. Assim hoje ele tinha que lhe dizer se a queria ou se iria continuar sem ela, como se a história deles tivesse sido apenas um pequeno desvio, como quem lê uma revista de viagens e pensa por momentos em transportar-se para algum recanto recôndito bem longe de tudo e todos. Se ele declarasse que ela tinha sido apenas uma ilusão, uma memória duma vida paralela, dum caminho não escolhido, talvez tudo se evaporasse e ela ficasse finalmente livre.

Quando se encontraram não precisou de ouvir todas as explicações que ele tanto praticara para justificar o injustificável. A sua mulher, os filhos, a imagem de perfeito cavalheiro, os sócios e colegas de trabalho, a empresa familiar construída com o dinheiro da família dela, a felicidade aparente do casal que todos admiravam, a sua integridade física e moral, tudo serviu para lhe dizer que não haveriam oportunidades, nem mesmo para aqueles que sabem esperar. Ela estava no fundo da sua lista e como tal era perfeitamente dispensável, até ela teria que perceber isso. Tinha sido bom, o sexo tinha sido fantástico, mas o futuro não lhes pertencia, aliás o seu "nós" já havia nascido quebrado.

Assistiu impávida enquanto esse homem de olhos negros cor de azedume lhe virava as costas para nunca mais voltar. E assim sem mais alguém a quem tanto tinha dado pedia-lhe para apagar dois anos completos de vida, passando um pano quente húmido de lágrimas por cima de todas as memórias que escolhera guardar daquele homem de olhos negros cor de fealdade, sentindo pela primeira vez a frieza da sua crueldade.

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