O alcance da desfaçatez

22.3.10

O padre passava por ali quando ouviu uma grande comoção. Ia apressado, com o livro de orações pela mão, e ainda queria passar na Dona Arménia a pedir-lhe mais uma encomenda de bolinhos com que presenteava as crianças que recebia na catequese. Seria talvez uma espécie de suborno mas ele tinha a certeza que Deus compreenderia a pequena artimanha a que recorria para evitar o esvair de sangue fresco dos bancos da sua velha igreja.

Não queria parar ali, não tinha tempo mas alguém o viu e soltou uma exclamação. "Está ali um padre! Vamos chamar o padre!" E várias pessoas se viraram e começaram a avançar na sua direcção empurrando-o naquilo que parecia ser um monte de metal à mistura com carne humana. Era um acidente, uma ocorrência estúpida e trágica daquelas que não lembrariam ao Diabo. Um rapaz tinha tirado o capacete da mota no sinal, talvez devido ao calor que se fazia sentir, e estava distraído quando a ambulância em marcha de urgência avançou. O sinal passou a verde e de repente o rapaz desapareceu, por baixo da mota, por baixo dum autocarro que entretanto tinha embatido de frente na ambulância. Havia um cheiro forte a sangue, mas parecia que estavam todos vivos, isto é, todos vivos menos o rapaz do amalgamado de metal e sangue. Foi por ele que foram chamar o padre, para que ao menos lhe administrasse os últimos ritos, a extrema unção, antes que soltasse o derradeiro suspiro.

O padre hesitou, não estava habituado a lidar com casos tão extremos. Uma coisa era ser chamado para ir a casa, sentar-se à beira duma cama onde há muito jazia o corpo de algum idoso prestes a entregar a alma ao Criador e ajudá-lo na transição duma forma pacífica mas firme, arrancando uma confissão ali mesmo ao virar da esquina que separa a vida da morte. Outra coisa era ser apanhado assim sem estar preparado, e para mais não se sabendo se a vítima ainda estaria consciente, condição indispensável para que o padre se predispusesse a administrar a dita unção. Também é verdade que não trazia consigo o óleo, mas esse era mero acessório, o que interessava era o canal, a comunicação, e a sua abertura de espírito pronta a acolher uma alma à beira do tormento final.

Acercou-se do rapaz que ainda estava vivo e perguntou-lhe se estava pronto para confessar todos os seus pecados e limpar assim a sua alma antes que fosse demasiado tarde. Olhou e sentiu, sentiu uma pontada grande, um formigueiro, uma angústia, um sufoco repentino. O rapaz tinha-o reconhecido! Mesmo envolto em metal, conspurcado de carne viva e sangue, mesmo a pontos de sentir o último estertor, as memórias vinham-lhe em bocados, à mistura com as lágrimas de sangue que corriam agora mais intensas.

Lembrava-se do primeiro dia, do primeiro bolinho, da primeira festinha, a primeira carícia, o primeiro beijo, a primeira vez que aquela mão lhe tinha subido pelos calções adentro, tocando em partes que eram só dele, que já nem as mãos da sua mãe conheciam.

Lembrava-se de se ter sentido orgulhoso, de se sentir o escolhido, o preferido, mais importante que todos os outros meninos. Até que um dia o orgulho se transformou em ódio, à medida que o padre o queria mais e mais, mantinha-o na sacristia tempos infindos, e a mãe orgulhosa do seu menino tão aplicado e tão beato. E o padre sempre querendo-o mais e mais, agora já não era só a mão, agora despia-se e obrigava-o a ajoelhar-se à sua frente, para que o seu sexo duro e quente o pudesse penetrar, uma vez, duas vezes, cinco vezes, trinta, quarenta vezes, tantas que havia dias que o miúdo já nem aguentava e desfalecia-lhe em cima do pénis sempre duro, sempre insatisfeito, sempre querendo mais daquele pequeno, ingénuo, frágil corpo de pequena ave sem asas nem liberdade.

Lembrava-se da vergonha, do nojo, de se sentir porco em permanência, desejando que o padre morresse todos os dias, de uma morte bem lenta e agonizante. Que todas as suas dores se transferissem para o Diabo que agora sabia ter conhecido, escondido sob o mais perfeito disfarce.

Lembrava-se de um dia ter tentado contar à mãe, ao pai e de lhe terem dito que inventava, que caluniava, que imaginação meu Deus!! Então e logo o senhor padre, que era tão bonzinho para as crianças, tão generoso, tão humilde!! Que ele era um ingrato, que se houvera alguém era ele que estava possuído pelo Diabo! A mãe então demorou muito até voltar a falar-lhe olhos nos olhos e até à sua morte nunca acreditou naquela história mirabolante que o filho que contara!

Agora ali estava ele de novo, o padre, querendo administrar-lhe os últimos ritos e pedindo-lhe que se arrependesse de todos os seus pecados! E reconhecendo-o! E ainda sentindo a chispa da luxúria, queimando-o mais do que os bocados de metal ardente enterrados na sua pele. "Não quero..." murmurou ele, "NÃO!" Mas os outros, aqueles que assistiam aos seus últimos minutos reprovando-lhe aquela negação do divino, insistiam com o padre para que continuasse, que lhe administrasse os ritos na mesma, que podia ser que Deus se compadecesse da sua alma, mesmo sem o devido acto de contrição.

E o padre feliz por prosseguir, acariciando-o de novo, como dantes. Os dedos escorregando-lhe pelos olhos, pelo nariz, pela boca, fazendo sinais de cruz, várias vezes, muitas vezes, muitas mais do que as necessárias, vivendo, bebendo ainda o pouco que ainda emanava daquele corpo tão jovem, tão vigoroso, tão quente. Comendo-o, bebendo-o, sugando-o tal como dantes, pior do que antes! E ali ficou o padre, acariciando-o até ao fim. E depois todos se compadeceram com a ternura do padre, tão bonzinho, tão generoso, tão humilde. E todos se foram a pensar que seriam precisos muitos mais padres assim no mundo para nos salvar a todos do Fogo Eterno do Inferno!

(E que venham eles, que nos comam as crianças, que lhes partam as asas antes mesmo de saberem voar e um dia saberemos porque todos juntos permitimos e causámos que seres execráveis, em nome dum Deus que eles próprios inventaram, invadissem o espaço, o corpo, a alma dos que não podem, nem sabem defender-se...)