O alcance da (falta de) resolução

23.9.09

O problema é que o nosso caso foi um caso mal resolvido e ficou-me entalado na garganta, como uma espinha ou um caroço. De vez em quando recorda-me que está ali qualquer coisa que não devia lá estar, que me dá náuseas e me dificulta a respiração. Obriga-me a olhar de frente para o espelho, procurar o furúnculo imaginário e espremê-lo bem para que saia de lá o pus infectado que se acumulou desde a última expurgação. E depois limpo aquilo tudo com o mesmo nojo com que limpava a esporra que deixavas no meu sexo.

É por isso que o nosso caso ficou mal resolvido, porque era só sexo, ou por outra, só o sexo é que era bom, tudo o resto foi inventado por mim e esta mania que todas as mulheres têm de romantizar uma relação que se baseia apenas e só em sexo. Estava eu já a construir castelos e futuros imaginários e tu só me querias ali de pernas bem abertas, fingindo que ouvias o que dizia entre os gemidos que te asseguravam que eu estava a ter prazer. E tudo não fazia sentido, nem faz, porque eu estava mesmo a ter prazer mas sempre a pensar que isso não me chegava!

Temporariamente saciaste uma sede animal que tinhas dum cheiro, dum corpo, duma pele, dum sexo e quando te fartaste de tudo isso não perdeste um segundo só a enterrar o cadáver da nossa relação que nunca chegou a ser. Hoje nem te deves recordar sequer do meu nome, tal será a memória que guardas de mim!

A puta aqui sou eu porque foi na minha memória que eu deixei que se alojasse o caroço que cuspiste e ao contrário do que todos dizem, tu saíste a ganhar porque se um dia calhar encontrarmo-nos na rua tu vais seguir em frente sem pestanejar e eu irei ficar ali pregada ao passeio, com a puta da espinha entalada na garganta, sem conseguir andar, falar nem gritar!

O alcance do amanhã-que-hoje-não-quero-pensar-nisso

15.9.09

Um dia a Paula cortou o cabelo. Escadeado e curto: um corte leve, giro. A Paula era gordinha de olhos azuis e o corte ficava-lhe a matar. Elogiei-a:"Estás tão gira, ficou tão bem!" e os olhos dela sorriam, toda ela ligeira e feliz com o corte novo.
Quando o cabelo começou a crescer meti-me com ela "Tens de voltar a fazer o corte, estavas giríssima!". Já não sorriu: "o meu marido diz que não casou com um homem..." e virou costas. Não consegui reagir. Quis dizer "Que cretino, olha o estupor! Grande malcriadão!" mas não me sau nada. Era o marido e se ela própria não se mostrava indignada não me quis meter. "Sê educadinha, deixa-te estar" ouvia avós, pais, professores, anjinhos, sei lá, na minha cabeça.
Meses depois, cabelos pelos ombros depois, a Paula andava cada vez mais triste. Chorava pelos cantos, pediu para ir trabalhar no mesmo sitio que o marido e nunca mais a vi. Mas soube que "foi para estar mais próxima dele que andava com uma colega". Arrependi-me muito de não lhe ter chamado os nomes todos que me passaram pela cabeça antes. Depois caí em mim e soube que pessoas como a Paula nunca mudariam e fariam sempre tudo igual. E foi tristemente melhor assim.

O alcance da injustiça

3.9.09

Fechou os olhos a custo, sentindo as pálpebras a arder enquanto a cabeça latejava, previsivelmente assinalando o início de mais uma enxaqueca. Hoje tinha-lhe dado um ultimato, mais um, mas que tinha decidido ser mesmo o último. Não podia continuar assim, estava em processo de auto-destruição acelerado e se não terminasse rapidamente aquela história não sairia viva da experiência que tinha encetado há dois anos atrás. Na altura achou que devia viver o momento porque aquele homem lhe interessava mais do que todos os outros e não queria nem saber que ele tinha mulher e filhos. E na verdade tiveram momentos muito bons, de entrega total, duma cumplicidade difícil de igualar em qualquer tipo de relação.

Mas houve um dia em que se fartou de esperar. Ele não lhe atendia o telemóvel, e não lhe respondia às inúmeras mensagens que fora deixando ao longo do dia. Começou a ficar preocupada, ele nunca tinha deixado de lhe ligar de volta, talvez não no momento mas acabava sempre por ligar. E depois quando se encontravam os seus expressivos olhos negros davam-lhe sempre a volta ao coração fazendo-lhe lembrar a letra duma velha canção de Francisco José, "olhos negros são queixume de uma tristeza sem fim". E ela queria muito mudar a tristeza que sentia nele, queria tanto conseguir curar essa tristeza que transparecia nos olhos desse homem que amava.

Mas nesse dia, em que esperou mais do que sentiu ser a sua conta, decidiu que não tinha vida para aquilo, para ele. Não podia estar sempre à espera, que lhe desse jeito a ele, à sua mulher, aos seus filhos e ao resto de toda a sua família. Porque nesse dia tinha ficado à espera dele sem saber que a sogra lhe tinha pedido para ir com ela ao IKEA porque precisava dum homem para lhe carregar e montar os móveis que tinha escolhido para remodelar o quarto da filha, mulher daquele homem de olhos negros que não sabia dizer que não a mulher nenhuma.

Considerou muitas vezes se podia viver aquela meia vida com alguém que só lhe podia dedicar um décimo da sua, talvez nem tanto. Mas também a ela custava dizer-lhe que não, os seus olhos negros tinham o condão de a deixarem à beira do desespero. Assim hoje ele tinha que lhe dizer se a queria ou se iria continuar sem ela, como se a história deles tivesse sido apenas um pequeno desvio, como quem lê uma revista de viagens e pensa por momentos em transportar-se para algum recanto recôndito bem longe de tudo e todos. Se ele declarasse que ela tinha sido apenas uma ilusão, uma memória duma vida paralela, dum caminho não escolhido, talvez tudo se evaporasse e ela ficasse finalmente livre.

Quando se encontraram não precisou de ouvir todas as explicações que ele tanto praticara para justificar o injustificável. A sua mulher, os filhos, a imagem de perfeito cavalheiro, os sócios e colegas de trabalho, a empresa familiar construída com o dinheiro da família dela, a felicidade aparente do casal que todos admiravam, a sua integridade física e moral, tudo serviu para lhe dizer que não haveriam oportunidades, nem mesmo para aqueles que sabem esperar. Ela estava no fundo da sua lista e como tal era perfeitamente dispensável, até ela teria que perceber isso. Tinha sido bom, o sexo tinha sido fantástico, mas o futuro não lhes pertencia, aliás o seu "nós" já havia nascido quebrado.

Assistiu impávida enquanto esse homem de olhos negros cor de azedume lhe virava as costas para nunca mais voltar. E assim sem mais alguém a quem tanto tinha dado pedia-lhe para apagar dois anos completos de vida, passando um pano quente húmido de lágrimas por cima de todas as memórias que escolhera guardar daquele homem de olhos negros cor de fealdade, sentindo pela primeira vez a frieza da sua crueldade.

O alcance do desespero II

2.9.09



As botas novas da Madonna vão passar a povoar muitos dos meus futuros sonhos eróticos.