O alcance do desespero

31.8.09

andamos todos desesperados, é o que é.

Ele tinha-me respondido assim quando lhe perguntei quanto tempo mediara entre o primeiro contacto, via net, e o primeiro encontro. Um fim de semana tinha bastado, um dia para trocarem números de telemóvel, outro para smses.
Tinha dito aquilo consciente do que dissera, desesperados. Os que não conseguem esperar.

Não consigo assegurar que antes [há muitos anos] o desespero fosse diferente, ou melhor, mas imagino sempre que antes de existirem telemóveis, emails, auto estradas, o ritmo da vida fosse diferente e as pessoas aprendessem a esperar desde que nasciam. Toda a vida seria uma sucessão de esperas, que a vaca desse leite e a galinha ovos, que chegasse uma carta ou um telegrama, que alguém voltasse da guerra, que o barco atravessasse o oceano.
Assim era que, no meio de outros ritmos e outras vidas, muito haveria a perder, pois a vida continuava algures enquanto alguém esperava - o nosso amor casava-se e tinha filhos com outro, os nossos filhos cresciam sem os vermos, alguém de quem gostávamos muito morria e não descobríamos até muito mais tarde.

Haveria também, acho, muito a ganhar. No cinema, por exemplo, se a personagem da Ingrid Bergman no Casablanca se fosse despedir ao aeroporto neste momento, diria ao Ricky algo como "Meet me in facebook", e nós não teríamos o "We'll always have Paris" para nos lembrar que perfeitos-perfeitos só os amores impossíveis.

O alcance do masoquismo

28.8.09

Já nem se lembrava bem de como tinha ido ali parar. Sabia que aqueles serviços lhe tinham sido recomendados por uma colega de trabalho, num momento de desespero em que tinha deixado escapar uma lágrima acompanhada dum gemido prolongado, incapaz de esconder a profundidade da depressão em que se afundava. O sítio não era demasiado agradável nem confortável mas também não estava à espera que assim fosse. Depois de aguardar durante longos minutos sentada numa cadeira de plástico indicada por uma assistente prestável, viu a figura emergir duma porta que se abria ao fundo do corredor. A dominadora estava ali, marchando determinada na sua direcção.

Não houve cumprimentos de espécie alguma, não era para isso que ali estavam. A dominadora colocou-lhe uma coleira à volta do pescoço e ordenou-lhe que a seguisse. Percebeu que não estava ali para falar nem ser ouvida quando a dominadora a mandou estar calada e lhe colocou uma mordaça na boca. Puxou-a pela coleira e levou-a até uma grande cruz onde a prendeu pelos pulsos e pelos tornozelos. Como que por milagre a cruz elevou-se um pouco e quando levantou os olhos do chão olhou para ela, a sua dominadora à sua frente de pé, as longas pernas abertas num perfeito ângulo de 60º. Foi isso que mais estranhou, essa aparente perfeição geométrica numa figura que tinha mais de repelente do que de atraente. A dominadora estava totalmente coberta de cabedal preto da cabeça às virilhas, sendo o preto dominante apenas interrompido pela brancura das pernas esculpidas abertas num V invertido com botas pretas de salto altíssimo penduradas nas pontas.

O silêncio foi quebrado pelo som da sua roupa a rasgar-se. A dominadora arrancou-lhe tudo, rosnando, furibunda, sempre que encontrava alguma resistência à penosa tarefa. Ficou assim desnuda, exposta, pendurada numa cruz, com uma mordaça na boca sentindo que talvez aquele fosse o princípio do fim de tanto sofrimento, tanta dor, agora seria só a recta final, o culminar de tantos anos a sofrer sem sentido nem motivo. Lembrou-se do negrume das freiras que a tinham educado em criança, lembrou-se da multitude de vezes que lhe diziam que todos nascemos para sofrer, e que ela iria sofrer até morrer porque tinha nascido do pecado, Pecado esse que se tinha tornado tão gigantesco dentro de si que por vezes quase a sufocava. Regurgitava dor em estado líquido e tomava comprimidos para tentar extinguir o vulcão latente de onde ela vinha, acordando sempre sentindo-se pior do que nunca. Talvez provocando a erupção pudesse aliviá-la, talvez... pelo menos era por isso que tinha tentado este último recurso.

A dominadora acendeu uma vela e baixou a cruz, fazendo que com ficasse deitada na horizontal, directamente abaixo duma luz intensa que lhe feria a vista. Fechou os olhos e manteve-se quieta, na expectativa de encetar a dolorosa via sacra. Sentiu um primeiro pingo, depois mais, até ser quase uma maré de pingos de cera a ferver tocando-lhe na pele fria, abrindo pequenos socalcos, empestando o ar com um cheiro de carne queimada. Ah a dor subia, sentia-a despertar dentro de si, pujante, brilhante, maior do que nunca.

A dominadora abriu-lhe um dos olhos e começou a espetar-lhe pequenas agulhas, primeiro superficialmente, depois enterrando-as até encontrar resistência por parte do osso, gerando uma nova dor, mais fina, que se juntava ao grosso caudal que emanava das inúmeras feridas abertas pela cera ardente. Já não via nada, só um buraco negro entrecortado por pequenos raios de luz penetrante sempre que uma das agulhas se enterrava na sensível retina, cravando-se no nervo óptico, destruindo-lhe irremediavelmente a visão.

Era aquela a última experiência, o supra sumo da dor que alguma vez tinha sentido. Aliás já não era ela, tinha deixado de ser, agora era só dor, horripilante, gritando muda no silêncio forçado pela mordaça que lhe tinha sido colocada. Só nessa altura sentiu pânico, sentiu-o crescer face à dor, tentando devolvê-la à sua condição humana, mas já era tarde demais. Sucumbiu face à dor, deixou-se levar por ela, atingiu um patamar nunca antes alcançado mas o seu coração não aguentou. Quando os paramédicos chegaram para a levar já estava morta sem qualquer hipótese de reanimação. Tinha provado a si mesma que só a dor é real, tudo o resto é pura ilusão.

O alcance da exigência

17.8.09

Meu amor, não quero mais isto. Não quero mais esta eterna troca de insultos. Não quero mais não gostar do que vejo, do que oiço, do que sinto. Não quero continuar a desculpar-te, pois só agora tenho eu a culpa. Não quero mais este desatino de insegurança, de exigências constantes, de farpas afiadas direitinhas à minha consciência. Há palavras que se dizem e se assumem das quais não se pode voltar atrás. E tem havido tantas ultimamente.

O alcance do mau

10.8.09

Mau não é cair, tropeçar, voltar ao chão. Sei que me levanto e nem tenho nódoas negras desta vez. Apenas uma cabeça de abóbora que só olha para o cimo e não vê a falta de degraus. Pé em falso, portanto - ía jurar que não faltava degrau nenhum, mas de que serve isso agora?
Mau é que estas recolhas de escadote, estes recuos nas subidas me empurrem para ti. Refugio-me no "tu é que eras". E eras. Ninguém é insubstituível, bem sei. Ou tenho de o pensar que outro remédio não tenho. Mas eras tu. As saudades que eu tenho de uns olhos a brilhar, de umas mãos grandes, do teu tamanho todo e tudo o resto muito básico e físico que me fazia corar de excitação ao ver-te chegar.
Mau mesmo, é que o mundo se torne apenas um jogo e só existamos nós dois: ou sozinha ou a viver para ti, por ti, em ti, sem ti. E tudo o resto, paisagem, peões, figurantes, que nisto do amor à séria, aquele que eu queria mesmo, só existes tu.
Pior é saber que não estás, não vais estar aqui. Sonhar contigo, a dormir ou acordada e tu nunca aqui. Nem números, nem contactos nenhuns. E eu a cada tropeção - que sem pensar, vou refazendo cada pedacinho despedaçado, interesso-me por um ou outro a espaços - volto a ti. Com mais força, mais convicção: eras tu e mais ninguém. Aninho-me em ti como antes e fico assim. Eu sinto-te. Como se fosse hoje. Mas tu nunca estás.

Tem 33 anos [parte III]

5.8.09

Chegou o Verão e ela nunca falava das suas férias.
Ao almoço, mais uma vez, perguntei-lhe "Então, para onde vais de férias?" Não levantou os olhos do prato "Não vou para lado nenhum" e senti que aquela garfada de comida foi engolida a custo, como se tivesse medo que lhe fizesse mais alguma pergunta "Mas porquê?" Os olhos continuavam em cima do prato, os gestos tornaram-se mais rápidos e bebeu o sumo de um trago só "Não posso" e levantou-se com a desculpa que ia fazer um telefonema. Não ia. Saiu e puxou de um cigarro e eu, que nunca a tinha visto fumar, fiquei estupefacta e constatei, nesse momento, que talvez nunca a viesse a conhecer realmente - uns dias tão amável e faladora, outros dias tão reservada e soturna. Quase bipolar, diria.
Quando entrou sugeriu que fossemos tomar café noutro local e num passo rápido avançou para a caixa e pagou o almoço de ambas. Agradeci.
Em todo este tempo nunca falou directamente de si, disse-me apenas que tinha 33 anos, feitos no pior mês do ano - Fevereiro. "Não gosto do Inverno e Fevereiro é um mês que não se define. Custa a passar, sabes?" Não sabia, nunca tal tinha sentido. Aliás, nunca tinha ligado muito aos meses do ano mas fiquei a pensar no meu - Setembro - e acabei por constatar para mim própria que esse sim, talvez fosse o pior mês de todos - o dos recomeços, o que por si só, dá uma trabalheira.
Bebe sempre um café duplo, não lhe põe açúcar mas mexe o café como se o tivesse acabado de deitar. "Agora fumas?"
"Sempre fumei, a única diferença é que agora compro cigarros, antes fumava o fumo dos outros." Não valia a pena, aquele dia estaria com certeza a correr-lhe mal e desisti de lhe fazer este tipo de perguntas. "Vamos?" Fomos. O resto do dia foi passado em absoluto silêncio, apenas com as interrupções normais dos restantes colegas e chefes. Antes de sair, despediu-se com um até amanhã e naquele compasso de espera, entre eu levantar a cabeça da papelada e ela abrir a porta, senti-lhe as reticências na voz, como se quisesse dizer mais alguma coisa. Mas sorriu apenas e saiu.

O alcance de ter escolha

... e de não a querer fazer. Não quero. Porquê, se posso ter tudo? O céu e o inferno, o bom e o óptimo, a calmaria e o vendaval? Escolho a terceira alternativa, sempre: os dois.

O alcance do desespero

2.8.09

'bora começar os posts todos assim?

Quando era pequena tinha medo de cães, como todas as crianças que não convivem com animais. Diziam-me então os adultos - quando o meu instinto era desatar a correr se via um cão a menos de 100m - não te mexas, o cão só te faz mal se farejar o teu medo.

A mesma medida aplica-se perfeitamente às pessoas do sexo oposto que nos interessam - não te mexas, a pessoa só te maltrata/abandona/ignora/abusa de ti se farejar o teu desespero.

Pena é que, na maior parte das vezes, seja tão difícil controlar os instintos mais primários.