O alcance dos gritos

30.7.09

Diogo parou para tentar rebobinar a sequência de eventos que o tinham levado até aquele momento. Tinha acordado com aquela leve sensação de angústia, semelhante a quando constatava que só lhe restava uma cápsula de Nespresso na prateleira da cozinha. Com o passar do tempo a angústia tinha-se espalhado até se parecer mais com o que sentia quando sabia que ia falhar um prazo de entrega importante.

A sua vida tinha sido um mar de calmaria desde que se lembrava, até ter conhecido Luísa. Por ela tinha-se apaixonado perdidamente, nada a ver com tudo o que tinha experimentado até aí com as outras mulheres que se tinham cruzado no seu caminho. Até então tinha gozado de uma leveza de espírito rara nos homens com quem confraternizava. Andavam sempre todos cheios de problemas... com a mulher, com o carro, com o chefe, com os filhos, com as (ou os) amantes. Ele não, sempre tinha mantido aquela vontade de brindar à vida, sempre vivida de forma intensa e fluida.

Ao início tinha sido tudo tão bom, eram totalmente compatíveis, achava que tinha encontrado a sua alma gémea. Viajaram imenso, fizeram amor em todos os cantos de todos os quartos de hotel por onde passaram. Diogo divertiu-me como nunca, achava que tinha finalmente atingido aquele patamar porque todos os homens e mulheres anseiam, de paz, de segurança, de conforto, de felicidade!

Mas depois um dia os gritos de prazer dela tinham sido substituídos por ordens! Ela queria ter um filho dele, queria um miúdo que herdasse aqueles seus olhões azuis de morrer dentro deles e gemer por mais. E ligava-lhe a toda a hora, queria-o ali a tentar impregná-la, tratando-o como mero contentor dos genes dos futuros filhos dela! Tinha arrastado Diogo de médico em médico, tentando de tudo, obcecada com aquela vontade férrea de parir!

Ontem tinha sabido, ela tinha-lhe dito, assim como se o informasse que tinha ganho o euromilhões. Estava grávida dele, não de um, mas de dois, dois filhos dele, dois rapazes, dois fiéis depositários dos seus genes de ouro! Diogo dirigiu-se para a varanda na vã tentativa de apanhar um pouco de ar fresco, dividido entre a filha da putice da culpa que o assaltava por ter cumprido as ordens de Luísa e a vontade de desaparecer para onde os seus gritos nunca mais o alcançassem.

É, devia ter-se posto a milhas assim que os gritos de "fode-me!" foram substituídos pelos de "faz-me um filho!" Agora estava tramado e bem tramado, num beco sem saída, agarrado, prisioneiro sem apelo nem agravo nem perdão possível, condenado para sempre a tudo aquilo que sempre tinha renegado, escravo dela, deles, e de todas as responsabilidades concebidas artificialmente e in vitro! Puta que a pariu!

Chama-se Raquel [parte II]

28.7.09

Ontem chegou triste. Pousou a mala vermelha e saiu rapidamente a querer esconder as lágrimas que teimavam em saltar dos olhos. Penso que terá ido ao WC e que tenha respirado fundo, escondida por trás das portas minúsculas, tentando ter a privacidade que num escritório enorme nunca se tem.
Quando voltou olhou para mim de relance e eu, vergonhosamente, fingi que não estava a observá-la e continuei atrás do meu monitor, espreitando feita uma velha caquética que gosta de coscuvilhar a vida dos outros.
À hora de almoço perguntei-lhe se queria sair um bocadinho e convidei-a a almoçar comigo num restaurante de que gosto muito - Passion Fruit - ali na 5 de Outubro. Inesperadamente, acedeu.
"Podes só esperar um pouco enquanto faço uma chamada?"
Esperei. E em cinco minutos que ali estive, sentada na minha secretária a escrever post-its para que não me esquecesse das compras que ainda tinha de fazer quando saísse, ouvia-a murmurar que estava farta. Depois desligou.
"Vamos?"
"Claro."
Saímos, ela com a sua mala vermelha eu com a minha castanha e entre o 7º andar e o rés -do -chão, ela quebrou o silêncio que se instala quase sempre nos elevadores.
"Porque me convidaste?"
Surpreendeu-me a pergunta. Ali estava eu, sem ter como fugir, a pouco mais de um metro de distância daquela mulher e com uma pergunta apontada a mim, como se fosse uma arma.
"Não sei bem. Apeteceu-me."
Não disse a verdade. Mas ficámos assim e claro, falámos do tempo e do calor que tardava em chegar. O tempo é sempre uma boa desculpa para quem não sabe o que dizer... e eu não sabia.
No restaurante aquela pessoa deixou de ser quem parecia ser: sorriu, meteu conversa com o empregado e eu diria mesmo que flirtou com ele, deixando-me com uma pontinha de inveja por não ter aquele nível de descaramento: levezinho, subtil como uma pena mas perceptível a quem vê. Abriu-se num sorriso e perguntou da minha vida e eu, que pensava que iria ali para saber mais dela, acabei por falar mais de mim sem qualquer receio ou constrangimento. Estranho, diria.
Antes de entrarmos no escritório disse-se apenas "obrigada". E voltou a olhar para o telefone, mais uma vez, à espera que tocasse.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come

Décima quarta. E espero não ser a última, que 'the more the merrier'. A ver vamos o que sai daqui. Não se surpreendam muito, sim? Porque aqui posso escrever o que me der na real gana. E olhem que me tem dado tanto, mas tanto na real gana nas últimas semanas... como me apaixonei perdidamente, o que não seria grande novidade, mas por outra mulher, o que também não é assim uma novidade tão grande, convenhamos. Bom, para mim é.

Obrigada pelo convite, meninas :) Vou adorar estar aqui, já para não dizer que é uma honra.

Relações-qualquer-coisa

27.7.09

ela descrevia-me a noite anterior, de sábado, pensara ir a um restaurante mas ao chegar à porta tinha visto o carro do querido dela ["estamos terminados"] e tinha mudado de ideias. "O meu querido".

Pensei muito nisso porque gostei da expressão mas não deixei de a achar estranha, o meu querido, não o meu namorado, marido, ex qualquer coisa.
Também eu tenho vários ex-qualquer-coisa. Qualquer coisa.
Das milhares de expressões que inventamos para não nos comprometermos com outra pessoa:
Uma tipa com quem ando a sair, é só o X dormimos juntos umas vezes, é a miúda que ele anda a comer, anda metida com o Y, andam enrolados, tiveram um caso, deram umas voltas.
Ganhamos aversão a palavras como namorado, achamos fabuloso quando alguém se casa "que coragem", como se fosse saltar de um avião sem para-quedas, que coragem, outras vezes só encolhemos os ombros porque "está-se mesmo a ver no que é que aquilo vai dar", como se a alternativa, saltitar de relações-qualquer-coisa fosse tão melhor.

Ao mesmo tempo que desvalorizamos tudo aos outros, enquanto estamos mesmo a ver no que é que aquilo vai dar, fazemos tudo para não ser aquelas pessoas que têm relações sérias, para não ter destroços se a coisa corre mal, para não ter restos de separações dramáticas com lágrimas dentro de nós que poderiam deixar marcas, para não cair numa rotina de casal que se senta a jantar sem palavras para dizer um ao outro, que se trai, que se maltrata um ao outro porque está farto e aborrecido, que se odeia silenciosamente, que se irrita com todos os pequenos defeitos do outro, que fantasia com terceiros.
Porque de facto, quando observadas de fora e de perto, todas as relações são más.

A pior parte de ser solteira é ter pavor de deixar de ser. Ou então, se calhar, é a melhor.

Fucked up dear John letter

23.7.09

o que eu já me ri... mas conto.
então,o tal, seguro e amoroso e tal... ai lá vem o riso... hahahaha...aquele de quem eu disse maravilhas... hahaha... eu, eu a falar como se ele fosse muito maduro... hahahah... eu a ler-lhe coisas certas e acertadas, naturais que só podiam ser verdade... ai esperem que não aguento...hahaha... eu a pensar sim senhor, metes tantos num chinelo... ai doi-me a barriga de rir... e... e...e... ele... sempre à altura, sempre a corresponder e a investir... hahaha.. pensar no que ele investiu....hahahah... ele... hoje do nada que não, é melhor assim, que não nos vamos aborrecer... hahahaha... foi muito bom!
Eu sem perceber muito bem a principio como quando no meio de um abraço sai uma alarvidade e nos vamos soltando lentamente... hahahaha e de repente nos cai o céu em cima e o peso do mundo nos ombros... hahahaha... e depois a ouvir aquilo tudo muito frase feita, muito coladinho com cuspo e "é assim que devo dizer, pois" hahahaha... já estou no chão... hahahaha... ...isto é triste, vou só ali agrafar a lingua aos dedos.

Ass: Abóbora debulhada em pevides

Eu sei que isto não é o da Joana, muito menos da Abóbora

Mas cheguei há pouco a mais uma alusão que só cabe aqui.
Escadotes lembram-me - hoje mais uma vez - snakes and ladders. Como o jogo, pois.
Enquanto ladder sobem-nos, levam-nos aos píncaros, ego ao alto, saltinhos de nenúfar em nenúfar. Depois, aparece a snake no caminho e é desandar ladeira abaixo sem passar na casa da partida.
Andava eu em treinos para bitchier bitch quando fui distraída por um destes. Felizmente estou quase de volta aos treinos, falta só o grito e choradela finais e um brevissimo luto de risota e muito sarcasmo.
Para acompanhar, segue-se dentro de horas post catarsico-ressabiado (sort of que we are ladies) em formato dear john letter.

Quero casar por procuração, pode ser?

19.7.09

Não é bonito eu sei, mas é assim.

Não preciso de um homem para levar os sacos do lixo [um velhinho que andou atrás de mim dizia "todas as mulheres precisam de um homem nem que seja para, como dizem, levar o lixo para o caixote"].

Não preciso de um rapaz que me escreva amo-te com o calor do cigarro no papel de fax, 100 vezes seguidas.

Não preciso de um namorado que me gabe as ancas [pouco haverá para gabar também] e me faça sentir muito bonita, inteligente, maravilhosa.

Não preciso de um amigo especial com quem partilhar tardes de chuva de inverno, da única maneira mesmo boa de passar as tarde de chuva de inverno.

Não preciso de um caso que me envie mensagens a meio da noite [ou da tarde], mesmo que sejam amorosas e me façam rir.

Meus queridos, eu já passei dos 30, aos 20 é que essas coisas tinham imensa graça.
Agora era mesmo só trocar umas palavras a meio de algum jantar enquanto se combinam horários para ficar/buscar/levar/deixar os miúdos, as compras de supermercado e um fim de semana em qualquer lado.

Dear John letter nunca deixada

16.7.09

Eu podia parar com isto. Podia. Mas nunca to disse. E isso provoca ecos que duram o tempo que tiver de ser. Ecos que descem por mim abaixo e nunca me largam. Ouço-me desancar-te, encostar-te à parede, fazer-te num oito e no fim nunca mais te ver. Vejo-me explodir-te na cara todas as verdades a que fugiste e eu tinha tão alinhadinhas para te dizer.
Era tudo piropo, tesão e "minha Nossa Senhora" até um dia. O dia do costume.
Um dia deixaste de me tocar, de me elogiar de me deixar o ego nos píncaros. Assim, sem mais nada. Um dia ías ser pai, eu era a outra, e tinhas de te portar bem. Portar bem... "achas que tenho condições de te dar o que queres?" - ai pensar no ridículo clichet que te revelaste chega a ser cruel - eu não via nada, claro. Para mim, estavas "só" a ser cobarde. E era tão mais que isso. O alcance da coisa era tão maior que os ecos ali em cima só ficaram no presente por pura estética ou preguiça. Já não os ouço, já não quero saber. Também ainda não quero tropeçar em ti. Mas os ecos, já não ouço.

Quero aqui deixar o meu agradecimento público

aos meus "amigos" homens e casados que, tendo tentado descobrir na minha intimidade pormenores sórdidos ou (no mínimo) de algum interesse erótico e não tendo conseguido vislumbrar mais do que um dia-a-dia banal, sem aventuras de realce, sem toques de sordidez de alcova, fizeram o favor de me tentar formatar a personalidade para uma mais aceitável no feminino - nomeadamente dizendo que eu não arranjava homem por ser [sic] bruta como as casas.

Meus caros, eu em querendo ser insultada ou maltratada iria mais vezes ver o meu pai ou, quem sabe, já teria casado com um tipo parecido convosco.

A minha gratidão para com vocês é tanta que temo não poder pagar-vos de forma alguma.

Ficará para uma próxima vida em que eu, reencarnada numa magnífica ave de rapina, vos pouparei a vida e a saúde - vós reencarnados em pequenos animais rastejantes que servem de alimento às aves de rapina.

What goes around...

15.7.09

Havia uma casa. O sofá que compraram, a cama, o wc verde alface e o rosa shock; as noites em que a tv nem era ligada e os fins de semana de limpezas a dois e solinho na piscina. Viviam juntos…faziam planos para o futuro e o jantar com um sorriso. Não, ele não estava sozinho quando te encontrou a dançar e não era uma louca com quem dormiu uma vez que lhe mandava mensagens que falavam de corpos, beijos e esperas longas.

Querida, e o nome dela que tantas vezes me pedias para procurar, não era esse que o telemóvel mostrava; se pudesse, teria dito logo que não…ela não é uma horrorosa, encalhada que não tinha mais ninguém por quem esperar. Conseguisse eu odiar-te e não tinha evitado tantas das vossas discussões, não teria oferecido o meu ombro para lágrimas e não deixava que me chamasses amiga. Querida, soubesses tu quem sou e não me tinhas pedido para lhe fazer companhia, para o vigiar…

Prevenir as quedas

14.7.09

"Ao contrário do que pode pensar, as quedas e os acidentes raramente acontecem. De facto, podem ser tomadas muitas medidas simples que reduzem a possibilidade de estes ocorrerem. Tenha presente que para fazer uma mudança nos seus hábitos vai ser necessário empenho.
Para reduzir as suas hipóteses de cair é muito importante que:
Reconheça os motivos, relacionados consigo ou com o seu ambiente, que o podem levar a cair; corrija hábitos e atitudes que possam favorecer quedas; torne a sua casa mais segura e à prova de queda, já que a maioria das quedas que provocam uma fractura acontecem em casa."
Para as interessadas mais aqui:
Associação Nacional contra a Osteoporose

Permita-me a cara colega dizer de minha justiça

11.7.09

Eu cá acho que a culpa tem de ser alguém, e que foi para isso que as relações foram inventadas. Para que os seus intervenientes sejam os amos da culpa, mestres das obrigações e senhores dos já devias saber e se não sabes é porque já não gostas de mim.
Quem mais tem a obrigação de saber tudo, desde a hora a que se tira o peixe do forno até à quantidade de vestidos que se compra por mês do que quem nos mete pele, carne e fluidos dentro? Quem mais passa mais horas dentro do nosso corpo, à parte nós mesmas (que já fomos suficientemente castigadas com borbulhas, queimaduras, saldo negativo)?
Sou apologista da culpa total: as pessoas com quem temos relacionamentos têm a culpa de todos os males do mundo, desde a crucificação de Cristo, passando pela segunda guerra mundial, não esquecendo a extinção do tigre branco e terminando na dita borbulha.
A redenção total passa por uma boa foda ou uns carinhos na cabeça.

Nem tudo o que parece é

De manhã ela traz uma máscara de boa-disposição: chega ao escritório e cumprimenta as pessoas com um sorriso saudável. Consulta a agenda, verifica a papelada e começa a trabalhar. Eu, do outro lado da sala, limito-me a fazer conversa de circunstância e a sorrir na mesma medida - a simpatia nunca fez mal a ninguém e a rapariga nunca foi mal-educada comigo; apenas chegou há pouco tempo e ainda não houve tempo para afinar o nosso relacionamento profissional.
Por vezes levanto os olhos do meu trabalho e noto-lhe um olhar triste, tão triste e perdido que fico com vontade de me sentar à sua frente, deixar-me de conversas de circunstância e perguntar-lhe se está tudo bem, ou perguntar-lhe mesmo em tom de confirmação "Não está tudo bem, não é verdade?"
Veste-se bem, não usa demasiados acessórios e o cabelo é luminoso, tão luminoso que já foi tema de conversa entre nós - a única vez que falámos um pouco mais. Confessou-me não usar produtos caríssimos comprados no cabeleireiro mas antes aqueles produtos brasileiros que quase ninguém se atreve a comprar, pelo menos as portuguesas, diz ela. O que é certo é que até eu já os procurei e não os encontro.
Não recebe telefonemas ou mensagens. Olha de vez em quando para o telefone e acho que se limita a confirmar aquilo que estava à espera - ninguém a procurou. Fica sempre com um semblante triste que automaticamente disfarça se nota que está a ser observada. Escreve muito num caderninho cor-de-rosa, com um lápis de carvão e desconfio que é ali que guarda todos os pensamentos. É bonita mas parece-me infeliz, ou então é só impressão minha que tenho a mania de tentar ver para além daquilo que me é dado a ver.
Qualquer dia pergunto-lhe pelos tais produtos brasileiros e quem sabe... talvez seja esse o mote para mais algumas conversas ou desbafos e quiçá, uma futura amizade.

a culpa não morre - de todo - solteira

Adoro todas as minhas amigas mas começo a fartar-me da conversa das divorciadas que culpam os ex-maridos de todas as desgraças e dores, faltas e falhas, borbulhas e queimaduras no fogão. Oh porque o cabrão telefonou quando estava a fazer a depilação, enervei-me e espalhei a cera no sítio errado, porque aquele filho da puta veio buscar os putos ainda nem tinham jantado e, quando ouvi a campainha, agarrei no pirex do peixe assado sem pegas, porque ando chateada sem homem e é verão e só vejo casais nas esplanadas e gastei o ordenado todo em vestidos e agora aquele sacana não adianta o dinheiro dos filhos do mês que vem, não aguento uma relação porque aqueles anos todos com aquele estupor me deixaram muito marcada e magoada, porque a parede da sala está toda esburacada com os pregos dos quadros horríveis dele, porque há uma crise mundial e não fui aumentada e a culpa - não sei como, mas tenho a certeza! - só pode ser dele, quando investiu na bolsa o dinheiro que a tia lhe deixou e acho que foi isso que provocou a queda global das bolsas, eu bem lhe tinha dito que era preciso era mudar de carro, aquele inútil nem isso!

É certo que seriam uns trastes, pois está claro, seja porque nos deixaram e trocaram por uma flausina pirosa com as mamas todas de fora, seja porque lhes metemos as malas à porta, fartas de tanta migalha, pelo no lavatório e a almofada do sofá marcada com o rabo deles. Mas isso não impede de sermos umas princesas que merecemos melhor: e merecer melhor começa por apagar esse ódio e esquecermo-nos de todos esses detalhes menos felizes. E - vá, um esforço - reconhecer que também não fomos sempre perfeitas e, às vezes, a culpa não é de ninguém.

Será de mim?

O raio do homem resolve aparecer sempre na altura certa de berbequim em riste.. ora, quem resiste...?! Nem é o meu género, mas aquele gesto tira-me do sério. A falta que um homem destes faz numa casa.

Do alcance

10.7.09

Não tenho a certeza se o título do blog se torna perceptível para quem nos visita, presumo que não e vou esclarecer (sob pena de nos tornarmos um blog de prosa encriptada e de consumo exclusivamente interno).
É preciso que se diga que este blog procede de um outro, também colectivo. Algumas de nós já escrevíamos no primeiro e só transitámos. Outras não. Algumas de nós conhecem-se. Outras não. Nenhuma de nós sabe na íntegra quem é quem sob os pseudónimos com que assinamos. Algumas de entre nós são amigas, outras conhecem-se e outras nem isso. Algumas de nós confessaram a outras quem eram. Outras permanecem na bruma.
A ideia de formação do blog surgiu numa caixa de mensagens do facebook em que, tentando combinar um jantar de amigas, começámos por falar no local para o jantar e acabámos a falar em chaves de fendas e escadotes. Do alcance deles. Com muitos trapos pelo meio, evidentemente.
Dessa conversa de 119 mensagens trocadas nasceu o "alcance dos escadotes", não o blog mas as teorias sobre se o tamanho importa e em que dimensão (comprimento, largura) em que prevaleceu a magnífica "é como os escadotes, chegam a mais lados".
E portanto, foi assim.
Lembram-se?

Uma imensidão de degraus

São os teus braços. São eles que me prendem, que me deixam tonta. Sempre deixaram. E naquela noite em que todos rodopiavam e ele chegou para nos lembrar o que já fomos, matar as saudades de ti era só mais uma pequena vertigem. O Jogo ficou decidido no primeiro minuto da noite; o meu corpo só dançava para os teus olhos que ficaram parados em mim. Foi assim. Passou muito tempo…deixamos passar muito tempo.

Não importa como chegamos…já cá em baixo, presa no teu abraço e no desequilíbrio de ser tua outra vez, os beijos disseram todas as coisas que não podemos. Olhámos para cima, olhaste para mim e num sorriso lembras-me “são seis andares, uma imensidão de degraus…”

Foi uma subida de sorrisos, memórias e coisas novas…tudo junto, tudo. E sempre devidamente compassado, como se a musica nos tivesse ficado no corpo. Sem pressas, a ver os carros e as pessoas a ficarem pequenos, tão pequenos quando nos afastamos…e sorriamos. Um andar de cada vez…muito devagar, sem nos cansarmos. E quando chegamos ao quarto do sexto, ainda houve tempo de ver o sol a nascer na nossa janela, mesmo antes de me aninhar em ti para dormir.

Quero chupar o teu joelho!

9.7.09

Hoje quando te agarrar não te largo mais e vou directa a esse pequeno triângulo carnal que dança sensualmente à frente dos meus olhos. Não penses que te escapas, rasgo-te a pele das pernas com as unhas e com os dentes, prometo não me engasgar com os teus pelos. Depois chupo-te o sangue todo até arrotar vermelho. E provo-te que é falácia o que dizem sobre a carne de ser humano, que não presta ou que sabe mal, é precisamente o contrário! Se soubessem o manjar com que dormem ao lado, viravam todos canibais!

Eu sei, porque já te cheirei a carne viva e quase te posso descrever o sabor que daqui a pouco irá agraciar a minha boca esfomeada de ti. Eu sei que a tua carne é tão macia que nem precisarei mastigá-la, irei senti-la desfazendo-se de encontro ao céu da boca enquanto ouço ecos de anjos a cantarem um hino celestial à divindade que é a tua substância. Irei comer tudo à volta do teu joelho, irei chupá-lo até não restar pinga de sangue nem pedaço de carne, até ficar limpo de matéria, branco, seco, fantasma daquilo que um dia me fez enlouquecer e querer chupar o teu joelho até rebentar de prazer!

Depois do adeus

8.7.09

"Dá-me um beijo" pediu-lhe em jeito de súplica. "Já não gosto dos teus beijos" respondeu-lhe ela evitando olhar para aqueles olhos de cachorro abandonado.

Ultimamente agoniava-se com o cheiro dele, aquele misto de suor e cerveja com tabaco que se tinha tornado insuportável para o seu sensível olfacto. A náusea superava a pena, e era apenas isso que a tinha mantido ali tantos e tantos anos, ao lado de um homem que não sabia ser humano. Saiu para o quarto, determinada a fazer a mala pela última vez, tentando afastar da ideia as questões que ainda a assolavam... quem iria tomar conta dele? Da sua roupa, da comida, das contas corriqueiras que ela tinha tratado toda a sua vida? Quem iria manter este homem do lado aceitável da barreira social?

Suspirou profundamente e concentrou-se no que tinha para fazer. Sabia que iria encontrá-lo, revê-lo nas esquinas da cidade, deitado nos bancos de jardim, assumindo o rosto de todos os sem-abrigo que se atravessassem no seu caminho. Lia-lhe o destino ainda antes do seu inevitável desenlace. Mas tinham sido muitos anos, demasiados, e sentia-se demasiado fraca para continuar ali. Precisava de encontrar um espaço, em silêncio, um convento seria bom, um sítio onde não precisasse de pensar em nada nem tomar conta de si nem de ninguém. Encomendaria a sua alma a Deus, e a dele também. Se passasse os dias que lhe restavam a rezar seria apenas para que a morte dele fosse breve e sem sofrimento. E já agora que não o deixassem morrer ao relento.

Escadote novinho

7.7.09

Escadotes que me fazem pensar. Que nem merece a pena, não se interpretam escadotes. São assim e não se explicam. E eu sei isso, como todas sabemos. Mas não aprendo, nem quero.
Caio, fico no chão. Estatelei-me. Nunca mais volto a subir juro a mim mesma, de cabeça entre os bracos, lágrimas que começam de dor, correm de raiva e queimam quando já não quero mais chorar e continuam. Secam, a dor eventualmente passará bem como as marcas. Algumas
Mais cedo ou mais tarde volto a por-me a mesma idiota questão: subo, não subo? Rodeio-o, cirando em volta dele. Pode ser o mesmo, embora tenha a regra de não subir o mesmo escadote de onde caí, há uns anos. Encontro novos. Aprendi mais qualquer coisa, acho que bati no fundo da ultima vez e nada podera ser tao mau.
Vejo-o novinho a estrear. Vejo-o ali quieto, nem sequer me tenta enganar. Provoca-me vagamente e eu acho que tudo correrá bem desta vez. Subo um degrau, outro. Gosto, quero continuar. De repente, um estremeção. E eu não sei se é aviso ou prova. E claro, em degraus baixos que estou, o tombo será pequeno, continuo. E ele está ali, seguro, quieto. Não me atira ao chao, não me ajuda a subir. Não tem pressa. Acho que é só isso. Acho. Mas gosto dele, ainda estou na fase de o querer subir no matter what.

A décima terceira...

... ao que parece sou eu. Nada mal para começar.

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram*

Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam

Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram

E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto

É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto

Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto

Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto


É no entanto preciso que se diga que no processo [lento ou rápido] em que tudo se decompõe, se desintegra, se desfaz há partes de nós que vão desaparecendo. Que nem por isso ficamos mais fortes, mais imunes, mais vacas, melhores pessoas, mais mulheres.
If anything ficamos mais frágeis, com menos fé, mais fracas, menos dóceis, mais duras, mais tristes, com mais mágoas, menos inocentes.
If anything ficamos piores pessoas, piores mulheres.
Ou pelo menos comigo é assim.

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto.

*Ary dos Santos e Fernando Tordo, Estrela da Tarde

Coisas que me atormentam

6.7.09

Mas não podiam ter achado um tipo mais gay para os anúncios dos saldos no Corte Inglès? É que aquele loiro descompensado não é gay o suficiente para me fazer gastar dinheiro...

Um dia eu achava

5.7.09



Fui criada como todas as meninas, achando que um dia ia encontrar um príncipe, cavalo branco, salvação e todas essas coisas. A pessoa cresce e chega lá, morre de aborrecida, deita tudo ao ar, mas há sempre qualquer coisa que fica, uma réstia de crença absurda e infantil na salvação e no amor eterno que não se dissolve na espuma de todos os dias, que dura no meio dos gritos, dos bolsados, noites mal dormidas, flirts com terceiros e trânsito parado.
Acredita porque quer, porque não suporta não acreditar, mal sabendo que tudo já se tornou impossível, que ao longo dos anos e das desilusões o que ficou foi a parte prática não romântica que lhe permitiu subsistir todos os outros dias no vazio.
Aos 10 anos, é difícil pensar que um dia vamos olhar para o amor-da-nossa-vida-príncipe-cavalo-branco e pensar "não sou eu, és tu que já não me dás tusa".

Décima segunda

3.7.09

Eu, Joana Ofélia, estou aqui para subir os escadotes.... sem tombos, de preferência.

To boldly go where no man has gone before

2.7.09

Passou a mão pelo cabelo e pensou que tinha mesmo que ir apanhar ar. Talvez não tivesse sido grande ideia esta de fazer um cruzeiro em família, não dele claro estas ideias nunca eram dele, limitava-se a comparecer e a pagar a conta no final. Balbuciou uma desculpa e saiu para o convés convencido que o ar fresco da noite o ajudaria a limpar a névoa que se tinha instalado sobre a sua cabeça assim que tinham embarcado. Recordava agora esse momento, ela delirante, as crianças transbordando duma irritante felicidade.

Pensava em conversas que já tinha tido com alguns colegas do trabalho, que era de homem fazer sacrifícios pela família, alguns até passavam a gostar disso, inclusive das romarias aos centros comerciais arrastados pelas mulheres à procura do último disco do Tony Carreira. Era de homem chegar-se à frente e proporcionar esse prazer à mulher, comprando o disco do tal fulaninho com que elas suspiravam à noite quando se viravam de costas alegando dores de costas ou de cabeça ou de qualquer outra parte do corpo em que o pobre do marido se lembrasse de pensar em tocar-lhes.

Era de homem tudo aquilo, a família em primeiro lugar e ele em último. Mas agora nesse momento de solidão, por baixo de um céu pejado de estrelas e envolvido pelo reconfortante silêncio do oceano profundo, nada disso parecia fazer sentido. Toda aquela vida era uma merda, tinha sido desde o dia em que lhe tinha dito o malfadado sim, avançando por um caminho que não escolheria nem de olhos vendados! Seria tarde demais? Ela parecia ser feliz, adorava os pequenos prazeres que o dinheiro dele lhe proporcionava. As crianças iam pelo mesmo caminho, soando-lhe tão a falso aqueles "ohhh siimmm! És o melhor pai do mundo!!" que recebia sempre que lhes comprava as inutilidades caríssimas que lhe pediam. Uma vida inteirinha de sacrifício, porquê, para quê e sobretudo em nome de quem??

Acercou-se do corrimão e olhou lá para baixo, para as ondas de espuma que rodeavam o navio. Se toda a navegação fosse assim, tão suave, sem balanços nem sacudidelas... era o tudo ou nada, sentia-o a quebrar-se dentro de si. A parte anterior, já casca, ficaria ali, vazia, oca, morta... e a nova partiria enfim, atirando-se de cabeça para o desconhecido, preferindo mil vezes isso a ter que as enfrentar novamente, a ela e a essas crianças iguaizinhas à mãe. Lentamente subiu para cima do corrimão, olhou para o céu e para as estrelas, abriu os braços e pela primeira vez em toda a sua vida voou, um voo solitário, mas suave, sem balanços nem sacudidelas nem amarras nem limites!

O canto das cigarras-tritão

Mudamos, é assim, muda tudo, mudamos nós também. E, no entanto, algumas coisas ficam sempre, os pés descalços sobre o soalho nas noites de verão, as calças de linho atadas na cintura, as mesmas, agora macias de uso e lavagens, as cigarras imaginárias lá fora, as traças esmagadas contra as paredes. Mas mudamos, é inevitável. Lembro-me - agora tão vagamente, quase me parecem memórias emprestadas - do imenso medo de atirar os sapatos pela janela fora. O pavor de poder ter que pisar, ao mesmo tempo, cascas de ovos e pedaços de espelhos partidos. Em bicos dos pés, bailarina atabalhoada em pontas, na pirueta a queda certa, os cacos espetados pelo corpo (sem rasgarem a roupa; como são violentas essas feridas invisíveis). Mas sempre insistindo e não se pode dizer - dizemos mas é tão mentira - que se crie calo, que doa menos nas próximas vezes, se alguma coisa, dói mais porque já sabemos e a antecipação da dor não a atenua, antes a aumenta. Desistimos, é certo, em certas alturas mas depois, não, não é coragem - dizemos que sim mas é tão mentira - é só atracção do abismo, vertigem (do degrau mais alto), que nos faz

atirar de novo os sapatos pela janela, desatar uma vez mais os atilhos e pisar - eventualmente, inevitavelmente - dizemos depois - mais cacos, mais vidros, mais cascas de ovos. Sem as quebrar, sem quebrar tudo à nossa volta a começar nas pontas dos dedos e a teminar nas raízes dos cabelos.

Mudamos. Passamos a bailarinas permanentes, sempre em pontas, o contacto com o chão já desligado. Desligadas, etéreas, eternas na vontade de nos descalçarmos e atirar os sapatos - e a precaução - pela janela fora.

Só muda o desaparecimento do medo. O resto é - apenas e só, lamento dizê-lo, não acreditando eu no destino - uma questão de sorte.

À volta dos degraus

1.7.09

Foi tão bom para ti subir este escadote como foi para mim?
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Leva-me contigo ao topo do escadote!
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Hoje é dia de bricolage?
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Acabas de subir mais um degrau na minha consideração.
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Isto é infindável e deveras divertido! Escrever sobre um acessório arrumado sem nobreza nem glória numa escura arrecadação.